Liverpool, Inglaterra, 1838
Fletcher respirou fundo, sentindo pela primeira vez em muito tempo o ar de seu antigo lar, o cheiro cinza e familiar de poluição.
O porto de Liverpool parecia ainda mais agitado do que da última vez que ele e família estiveram ali, cinco anos antes. A viagem fora mais tranquila também, principalmente porque suas filhas, Violet e Irma, já não eram mais tão jovens. Violet acabara de completar vinte e um anos e, assim como ele e Mark, ocupava seu tempo com um bom livro ao invés de ficar jogando conversa fora. Ela também nascera parecida com o pai, com cabelos loiros e olhos azuis, mas herdara as sardas e delicadeza de Daphne, para deleite de Fletcher. Irma, a mais nova, por outro lado, estava muito animada para participar dos bailes da temporada.
Diferente da irmã, a jovem de dezessete anos possuía os mesmos olhos cor de mel, cabelos escuros e agitação de Daphne, até mesmo a voz das duas era fácil de se confundir.
— Estava com saudades daqui, querido? — Ele sentiu Daphne tocar em seu braço, enquanto caminhavam lado a lado pelas docas entre a multidão, cada um deles com uma valise nas mãos.
Fletcher olhou para a esposa com um sorriso no rosto, balançando a cabeça em negativo.
— Não exatamente. Gosto daqui, mas saudades é uma palavra muito forte.
— Acho muito curioso essa sua naturalidade em ficar tanto tempo longe da família de seu irmão.
Fletcher e Joseph se viam sempre que possível naqueles mais de vinte anos desde que ele decidira se mudar para Boston. O visconde o visitara três vezes, sempre ficando hospedado na Tulipas.
Quinze anos antes, o Senhor Simpson adoecera e ficou muito preocupado com o que aconteceria com o imóvel caso viesse a falecer, oferecendo-o a Fletcher, que aceitou o negócio. Ele viveu mais dois anos depois disso, e Mariana Simas e Daphne continuavam a administrar a pousada. Além disso, Joseph se tornara sócio da Fletcher’s Pencils, que cresceu substancialmente desde que Fletcher comprara a fábrica, virando uma referência de lápis de qualidade a um preço justo não somente na América como no resto da Europa.
— Bem, linda, estou com a minha família — Fletcher respondeu. — Digamos que vocês sejam tudo o que eu preciso.
Violet deu um longo suspiro.
— Já pensou em escrever romances, papai? O senhor certamente faria sucesso.
O tom sarcástico da filha fez com que Daphne risse.
— Não invoque com o romantismo de seu pai, querida. Eu gosto muito.
— Eu também — Irma concordou. — Não ligue para ela, papai.
Fletcher passou o braço ao redor dos ombros estreitos da mais velha.
— Sei que você prefere mistérios a romances, filha, mas vou adorar vê-la suspirando por um sujeito açucarado como eu um dia.
Violet apertou os olhos azuis para ele.
— Até parece...
— Pois eu espero conhecer um cavalheiro romântico ao extremo. — Irma bateu nas saias do vestido lilás.
Fletcher fez uma careta.
— Não vamos exagerar. Você ainda tem dezessete anos, mocinha.
— Ora, mas...
— Não comece essa discussão de novo, Irma — Daphne pediu. — Sabe que seu pai não vai mudar de ideia tão cedo.
— Dezessete anos! — Fletcher repetiu. — Claro que não vou mudar.
— E o que senhor espera? Que eu fique solteira como Violet? — Ela apontou para a irmã. — Ou me case depois dos trinta anos como Mark?
Violet soltou uma risada, sem se abalar.
— Do que está rindo? — Irma franziu as sobrancelhas.
— Ainda nem acredito que esse milagre aconteceu e Mark realmente vai se casar. — Violet olhou sorrateiramente para a mais nova.
E, com isso, a família inteira concordava.
Mark continuava, após todo aquele tempo, o menino de ouro de sempre — aos olhos de Fletcher e de Daphne, ele sempre seria um menino. Seus pais sentiam sua falta constantemente desde que ele decidira viajar e conhecer o mundo, mesmo com a carreira de escritor de aventuras em ascensão. Segundo ele próprio, seria bom realmente viver aventuras reais enquanto ainda fosse jovem. Meses antes, o aspirante a forasteiro decidira fazer uma parada em Londres para verificar as administrações da fábrica, e o que Fletcher pensou ser uma possibilidade de ver o filho envolvido em seus negócios acabou virando uma história de amor inesperada: Mark se apaixonara por Niyati Brown, filha de Nigel e Phillipa Brown, e estavam prestes a se casar e viver permanente do outro lado do oceano, na região de Hampshire. Ele passara pelo processo de naturalização e agora podia comprar uma propriedade em solo inglês. Bem... tal pai, tal filho.
— Acha que a Senhorita Brown vai gostar de nós? — Violet perguntou à mãe.
— Claro que vai. Niyati é uma moça maravilhosa. Vocês a conheceram da última vez que estivemos aqui. — Daphne fez um carinho na trança lateral da filha.
Fletcher fez um gesto com a mão, indicando que esperassem uma carruagem passar para atravessarem a rua.
— Ela está animadíssima para ver vocês. Seu irmão também.
— Ela deixou Mark rendido com uma grande facilidade... — Violet sorriu.
— Os Fletcher se rendem com facilidade quando a mulher certa cruza nossos caminhos. — Fletcher piscou para a esposa, que corou, suas sardas ficando em evidência. — Está no nosso sangue.
Daphne balançava a cabeça em negativa quando eles foram surpreendidos por uma voz familiar.
— Céus, me pergunto se Londres será capaz de suportar intacta essa quantidade de Fletchers.
Os quatro se viraram para a versão mais nova de Mark Fletcher, que sorria de forma travessa e os olhos cintilando sua alegria de sempre. Os cabelos claros estavam um pouco mais compridos, e ele estava mais bronzeado, mas continuava com as mesmas feições do pai, seu rosto quadrado, o queixo marcado e os ombros largos.
— Filho! Seu danadinho, por que não avisou que viria nos encontrar? — Daphne o puxou para um abraço apertado. — Ai, como eu estava com saudade.
Mark retribuiu ao gesto da mãe, sem parar de sorrir.
— Eu também estava, mãe. — Ele beijou a bochecha dela. — Você está linda. Fizeram boa viagem?
— Se não fossem os enjoos de Violet, seria perfeito. — Foi a vez de Irma envolvê-lo em um abraço.
— Você está enorme, princesa — ele disse à irmã. — Tem certeza de que faz apenas dois anos?
— Apenas... — Violet deu um muxoxo ao se aproximar. Ela também abraçou o irmão com alegria. — Como se isso fosse pouco tempo. Sei que está apaixonado e tudo, mas e quanto a sua nova história? Alguma previsão?
— Bem — Mark levou a mão à nuca —, tive que dar uma parada devido aos compromissos, mas Ni teve uma ideia muito interessante para o enredo, e...
— Acho que vocês podem continuar essa conversa depois de um abraço em seu velho pai, não é? — Fletcher os interrompeu, sem rodeios.
Mark assentiu, rindo.
— Claro, pai. Senti sua falta também.
Fletcher o envolveu firmemente, também dando uma risada.
— Seu palerminha. Não bastava esse rosto atrevido, você tinha que seguir meu exemplo e resolver viver longe?
Mark deu de ombros.
— Eu sei, irônico, mas não consegui resistir.
— Espero que esteja tratando-a como se deve, com flores e gestos e...
— Eu estou fazendo as coisas como se deve, pai. Não se preocupe.
Fletcher assentiu, e eles começaram a caminhar em direção à cidade. Daphne conversava com as filhas um pouco mais adiante, quando Mark se virou para o pai.
— Trouxe as carruagens dos Brown para irmos à Londres — comentou.
— Carruagens? No plural? — Fletcher franziu a testa.
— O barão fez questão. Eu disse que não era necessário.
— Ainda não acredito que você está entrando para a família de John, mesmo que seja com a filha de Nigel. Esse mundo é realmente muito pequeno. Eles são ótimas pessoas. Você não poderia ser acolhido por uma família melhor.
Mark pôs as mãos nos bolsos do casaco.
— Eu sei.
Fletcher analisou o filho, sem pararem de caminhar.
— Por que parece que sinto um nervosismo em sua voz?
Mark levantou os olhos claros para ele, apertando os lábios numa linha fina.
— Estou um pouco nervoso, pai. Digo, eu a amo, mais do que qualquer coisa, mas me preocupa a mera possibilidade de não fazê-la feliz.
— Por quê?
— Porque Niyati é perfeita, forte e boa. E eu sou...
— O melhor homem que eu conheço — Fletcher afirmou, firmemente, parando no lugar.
O jovem piscou rápido, seu olhar concentrado no rosto do mais velho.
— Você diz isso porque é meu pai.
— Eu digo isso porque é verdade. Se você a ama e ela ama você, acredite, filho, isso já é um grande sinal de que as coisas darão certo. A vida é imprevisível, é verdade, mas alguns de nós temos a sorte de encontrar o amor em sua forma mais pura. Entendo que esteja com medo, isso é normal, mas não duvide de você. Apenas faça sua parte e acorde todos os dias disposto a ser feliz e fazê-la feliz. — Fletcher apontou com a cabeça para a esposa e a filha que estavam alguns metros à frente. — Em breve será você no meu lugar, orientando seus próprios filhos.
Mark levantou o canto da boca, assentindo.
— Eu realmente senti sua falta, pai.
Fletcher passou o braço ao redor de seu ombro, enquanto voltavam a caminhar.
— E eu a sua, garotão. Confie em mim, tudo dará certo. Sei bem o filho que tenho.
E sabia mesmo. Não tinha nenhuma dúvida.