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Foto do escritorStefany Nunes

Cena extra: Hugh e Rose


Londres, 1824



— Aqui, meu bem — Hugh Turner, o recém-titulado marquês de Whitefordshire disse à Daisy, sua filha mais velha, devolvendo a margarida que ela lhe entregara.

A menina de seis anos inclinou a cabeça para o lado, piscando os olhos cor de mel que herdara da mãe.

— Papai, o senhor está triste porque sente falta do vovô?

Ele encarou o rostinho angelical, tocado.

Seus filhos — os três —, eram pequenos, mas muito sábios e sagazes.

— Como sabe disso? — ele perguntou.

— Porque o senhor está sentado no escritório de novo. Mamãe disse que quando fica aqui, é porque sente falta dele.

Ele engoliu em seco, tentando oferecer seu melhor sorriso.

Era verdade sim, que estava com saudades do pai, o velho marquês. Lorde Whilfred Turner falecera três meses antes, após um mal-súbito em meio a uma sessão do Parlamento. Sua mãe, a Marquesa, ficara tão chocada ao receber a notícia que Hugh ficou com medo de perder os dois no mesmo dia.

Foi difícil, doloroso, sofrido.

Ainda era, embora as semanas tivessem se passado num piscar de olhos.

Isso sem contar o que mudara na vida dos Turner daquele momento em diante. Como um marquês, Hugh não podia mais viver no interior, cercado dos campos de flores e da tranquilidade que tanto aprendera a apreciar.

Ele precisou retornar à Mayfair. A uma vida que já não lhe pertencia, e agora era sua, com todos os ônus e bônus.

— Papai está com saudades do vovô, mas também está cansado — ele disse à menina.

Daisy assentiu, olhando para a flor que segurava, e então para o pai novamente.

— Tudo bem, papai. Não precisa brincar comigo hoje. — Ela sorriu. — Vou chamar Magnus e Lilian, eu cuido deles.

Hugh sentiu o peito aquecer, a preocupação da pequena preenchendo seu coração.

— Obrigado, meu bem. Prometo que papai brincará com vocês amanhã.

A menina concordou com um aceno curto de cabeça e deixou o cômodo dando pequenos saltinhos. Hugh suspirou, passando a mão no rosto. Levantou-se e foi até o aparador, servindo-se um pouco de uísque.

A lareira estalava no tempo já frio de Londres, o vidro da janela estava embaçado, a visão do lado de fora um tanto prejudicada. Estaria mais frio no campo, Hugh se deu conta. Não que ele fosse reclamar, afinal, gostava do frio de Suckley.

Sentiria falta dele, tinha certeza.

— Querido? — A voz suave de Rose, sua linda esposa, chamou sua atenção.

— Olá.

Ela sorriu suavemente ao se aproximar.

— Daisy já passou por aqui, imagino.

— Sim, e ela encontrou uma margarida em algum lugar.

Rose riu.

— Sua mãe pegou um último buquê na floricultura esta tarde. Ela se mantém distraída com as crianças. Insistiu em levá-las.

Ele franziu a testa.

— Vocês saíram hoje? Fiquei tanto tempo em minha papelada que mal notei o anoitecer.

Rose suspirou, estendendo a mão, pedindo um gole da bebida de Hugh. Ele entregou o copo a ela, observando-a beber o líquido âmbar.

— Ao que parece, uma marquesa precisa de vestidos novos — Rose disse. — Vestidos, chapéus, sapatos.

— Céus… — Hugh passou a mão no cabelo. — Isso porque nem estamos em temporada social.

Ela assentiu, respirando fundo.

— As pessoas encararam. — Ela olhou para ele. — De um jeito… diferente.

— Quem? — Hugh pôs a mão na cintura. — Não vou permitir que a destratem.

— Não podemos controlar isso, querido. Podemos, contudo, ignorá-los.

Ele deu um gemido frustrado. Era isso que temia ao sair do campo, ao voltar para aquele tanque de tubarões que era Mayfair. Embora já fizesse anos que havia se casado com Rose, as pessoas ainda falavam do escândalo de 1815, do lorde que abandonara uma dama distinta no baile de noivado para se casar com uma criada. Em Londres, ele sempre seria lembrado por aquele escândalo. Não importava que a dama em questão estivesse felizmente casada com o verdadeiro amor de sua vida e tivesse sua própria família — Hugh ficara sabendo que Phillipa e Nigel Brown haviam viajado para a Índia anos antes e voltaram de lá declarando-se pais de duas crianças adoráveis.

— Temo por nossos filhos — ele disse à esposa, aceitando quando ela lhe ofereceu o copo de bebida novamente.

— Não há o que temer. Sabíamos que um dia teríamos que enfrentar isto.

— Éramos plenamente felizes no campo.

— Seremos felizes aqui — Rose afirmou. — Relaxe, você está sofrendo por antecipação.

Ele respirou fundo, dando razão a ela. Chamou-a para perto e envolveu sua cintura, sentindo o aroma suave de camomila.

— Quero protegê-los. — Ele tomou o rosto dela entre as mãos. — A mera ideia de vê-la sendo tratada com desdém me deixa…

— Ficarei bem — ela garantiu. — Ficaremos bem, meu amor. Confie em mim.

Ele confiava. Talvez, naquele mar de incertezas, aquela fosse a única coisa que pudesse fazer.


***


Rose Turner fora uma mocinha muito fragilizada nos tempos de outrora. Seu histórico e posição social ajudaram que se sentisse inferior em relação ao mundo a sua volta, até mesmo indigna de amor.

Não mais. Tanto tempo depois, sendo felizmente casada com o amor de sua vida e criando três filhos lindos, Rose se recusava a sofrer pelo destino que sempre soubera que teria, ao menos, desde que se casara com Lorde Hugh Turner.

Era uma surpresa justamente ela virar uma marquesa, mas as coisas eram como eram, Londres gostando ou não.

Contudo, Rose conseguia sentir a apreensão de seu marido, o marquês em questão, sair por seus poros. Ela entendia, considerando a natureza protetora de Hugh. Por isso, tomara uma atitude um tanto radical, mas que provaria a ele que ela e os filhos estavam bem — e que continuariam assim: juntou a família em casacos de frio e, na tarde de uma terça-feira nublada, saíra para caminhar no Hyde Park, enfrentando quaisquer olhares que pudessem lhes recriminar.

— Uma caminhada no parque? — Hugh perguntou, enquanto Rose enganchava em seu braço.

— Sim. Devemos mostrar a todos que estamos aqui para ficar. Somos os Turner, afinal.

Ele olhou para a frente, para as três crianças pulando alegremente.

— Não vou tolerar grosserias.

— Você não vai fazer nada — Rose afirmou. — Justamente por isso viemos hoje. Quero lhe provar que, apesar de alguns olhares, ficaremos bem.

Ele suspirou de forma frustrada, mas não retrucou.

Rose sorriu, encarando o rosto másculo de perfil. Ele ainda era o cavalheiro mais bonito de toda Inglaterra, Rose não tinha qualquer dúvida.

— Quem diria que poderíamos caminhar assim, num parque público? Lembra-se de onde nos encontrávamos?

— O Holland Park, logo adiante. — A mão enluvada de Hugh cobriu a dela. — Você ficou um tanto incomodada em dividir seu espaço comigo.

Ela deu uma risadinha, as memórias passando em sua mente como as águas calmas de um pequeno riacho.

— O senhor era ousado, milorde.

— Milady, veja…

— Não sou uma dama… — ela provocou.

— Rá! Você é. — Ele se virou, com um sorriso no rosto. — Meu Deus, finalmente posso usar isso em meu favor.

Rose ainda ria, aliviada pela expressão e humor de Hugh estarem mais leves. Eles pararam para observar duas crianças, um menino e uma menina um pouco mais velhos que seus filhos, brincando com dois esquilos curiosos.

— Cuidado, eles podem morder — Rose avisou, se aproximando.

— Ele quase me mordeu uma vez — disse o pequeno desconhecido.

— Porque você não sabe falar com eles, Ravi — a menininha respondeu.

— Eles já me morderam uma vez — Rose afirmou e os seis pares de olhos — de seu marido, inclusive — se viraram para ela.

— Já, mama? — Magnus perguntou.

— Sim, eu fui uma menina muito travessa — ela brincou.

— De vez em quando ainda acorda inspirada… — Hugh murmurou, levando um cutucão na altura das costelas.

— Meu Deus, vocês correm demais. — Uma voz feminina soou atrás deles, fazendo o marquês e a marquesa se virarem. — Da próxima vez, por favor me esp… Rose?

Rose sentiu o coração acelerar como nunca ao encarar os olhos violeta igualmente surpresos de sua ex-patroa. E ex-noiva de seu marido.

Oh, céus. Mesmo depois de tanto tempo, aquele encontro inesperado era, no mínimo, muito constrangedor.

Rose olhou para Hugh, que estava um tanto mais vermelho do que o normal, e então para Phillipa novamente.

— Lady Phillipa! — eles disseram juntos.

Phillipa sorriu, abrindo a boca para falar.

— Mamãe, veja! — A menina falou na frente dela. — Encontramos um esquilo e essa dama adorável nos contou que já foi mordida por um.

Dama… Rose fechou os lábios numa linha fina, fingindo que não sentira o cutucão de seu marido na altura das costelas.

— É mesmo, meu amor? — Phillipa disse à garotinha. — Tomem cuidado com o bichinho então.

As crianças se distraíram rápido com as criaturinhas. Phillipa voltou a encarar o casal.

— Já faz tempo — ela comentou.

— Lady Phillipa, eu… — Rose começou.

— Phillipa, ou, se quiser manter a formalidade, Sra. Brown. — Ela piscou um olho. — Gosto do nome do meu marido.

Hugh pigarreou, claramente desconfortável.

— É um prazer revê-la, Sra. Brown — disse ele.

— Eu posso dizer o mesmo. Sinto muito por seu pai, milorde. Sei o quanto é difícil.

— Obrigado.

— E você, milady… — Ela sorriu para Rose. — Eles são seus? — Ela apontou para as crianças com um gesto de cabeça.

Rose fitou os três filhos, assentindo.

— Sim. Daisy tem seis, Magnus cinco, Lilian tem três.

Lady Phillipa inclinou a cabeça para o lado, correndo os olhos nos pequenos.

— Lindos. Se parecem muito com a misturinha perfeita de vocês dois.

Rose sentiu o calor crescer em seu peito, o carinho e sinceridade nas palavras dela palpável.

— Esses dois são meus — disse ela, orgulhosa. — Minhas crianças. Niyati tem nove e Ravi, seis.

Rose sentiu-se emocionada com a expressão da dama em sua frente.

— Creio que estão de volta a Londres para assumir as obrigações — Phillipa quis saber.

— Sim, tivemos que voltar — Hugh disse.

Ela o encarou por um instante.

— Não estão felizes?

— Estamos — Rose se adiantou. — Hugh apenas… — ela hesitou —, estamos um tanto tensos. Nosso histórico é complicado.

Phillipa não pareceu se abalar.

— Sim, sim. Eu bem sei disso. Afinal, passei por algumas situações um tanto… peculiares.

Rose engoliu em seco, seu olhar fixo no de Phillipa.

— Sabem, cancelar um noivado um pouco antes do anúncio — ela piscou para Hugh —, quase me casei com um duque escocês. Fui um tanto julgada na época, pessoas perguntavam: oh, o que ela tem errado? — ela continuou. Rose sentia-se cada vez mais agitada, a pontada de culpa tomando-a depois de tanto tempo. — Anos depois, devidamente casada, eu não conseguia ter filhos, e então realizei uma viagem à India e voltei com duas crianças. Uma vida um tanto atrevida, não acham?

Nenhum dos dois respondeu. O que poderiam dizer, afinal?

— Mas, caso queiram saber… todos os escândalos me fizeram alvo de olhares, sim. Um pequeno preço a pagar pela felicidade que caiu em minhas mãos. O amor da minha vida retornou para mim, o destino me uniu aos meus filhos. — Ela fitou as crianças, que brincavam entretidas com os pequenos Turners. — Tudo tão maior do que meros mexericos.

Hugh levantou o canto da boca no mesmo instante. Rose acompanhou quando Phillipa deu um passo à frente e tocou no braço dela.

— Estou feliz por vê-la. Porque conseguimos todos encontrar nossa felicidade. — Ela olhou para o marquês, e depois para Rose de novo. — Sejam bem-vindos de volta. Tenho certeza de que tudo tomará seu devido rumo.

— Estou feliz por vê-la também — Rose respondeu.

— É realmente um prazer — Hugh concordou.

Phillipa assentiu e suspirou, muito serena.

— Ny e Ravi, vamos, queridos. Seu papai nos espera para o chá. — Ela se inclinou e sussurrou aos dois. — É mentira, mas estou muito cansada, esses dois não param um só minuto.

Rose ainda sorria ao observar a dama e seus dois filhos se afastarem.

— Isso foi… — Hugh começou.

— Necessário. — Rose olhou para ele. — Constrangedor, sim, mas necessário.

Ele soltou o ar, assentindo.

— Lady Phillipa sempre faz as coisas parecerem simples demais.

— Talvez porque elas sejam. — Rose fez um carinho no rosto dele. — Porque somos o que somos e se as pessoas falarem, que seja. O que importa…

— O que importa é que estamos juntos. Que somos felizes e que nos amamos — Hugh completou.

— Finalmente…

Ele sorriu, pegando a mão dela e levando-a aos lábios.

— Eu te amo, milady — disse ele, seus olhos cintilando amor.

Rose não retrucou aquele título. De que adiantaria, se era, enfim, verdade?

— Esta dama impensável o ama também, milorde. Com todo meu coração.

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